Artigo

ANÁLISE DE CONJUNTURA

10/12/2021 10h49

Enquanto luto, sou movido pela esperança; e se eu lutar com esperança, posso esperar (Paulo Freire)

O capitalismo despertou seu lado bárbaro. Seus tentáculos se movem, sobretudo em direção ao continente asiático, prolongando sua existência com sucessivas bolhas financeiras. A busca de lucratividade do capital é tão voraz que aguça o desejo do “dragão chinês” de se tornar o novo império do século 21. Esses deslocamentos do capital, predominantemente especulativos, são causadores de crises e instabilidades ao redor do mundo.  Mas, atenção! As crises expansivas do capital, cada vez mais frequentes, não significam necessariamente o colapso iminente do sistema, mas o surgimentos de novas reconfigurações de fluxo de dinheiro, poder e territórios.   

A vitória de Biden não arrefeceu o clima de hostilidades e a afirmação do império. Internamente, os democratas enfrentam a pandemia com vacinação e vultosos investimentos para a recuperação da economia. Externamente, os democratas voltaram a engrossar a voz, sinalizando que os interesses dos EUA não serão prejudicados, em nenhum lugar. Com alguns meses no comando, Biden acusou Putin de assassino e na primeira reunião entre EUA e China, os diplomatas americanos sentaram-se ao redor da mesa com ameaças de sancões.

A China não esconde suas pretensões. Combina harmonização com a diplomacia do “bateu, levou”, avisando que não abrirá mão de seus territórios e zonas de influência e tampouco abandonará sua jornada expansionista. Apesar da desaceleração da economia provocada pela pandemia, o crescimento do PIB chinês se mantém em alta. A China aposta em um mundo globalizado e não conta com uma marcha a ré em direção a um nacionalismo xenófobo. As cadeias produtivas globais necessitam de inter-relações, e os chineses estão dispostos a tecer essa complexa teia de interdependência. É neste contexto que a diplomacia chinesa vocaliza o fortalecimento dos organismos internacionais e uma melhoria na governaça mundial.

A Rússia amplia sua capacidade armamentista, avança em projetos econômicos nas bordas da Europa Ocidental (gasoduto Russia-Alemanha), acena integrar-se com iniciativas propostas pela China (Nova Rota da Seda), faz incursões militares para preservar zonas de influência e testar seus inventos bélicos.  

Apesar das especificidades conjunturais do Brasil e dos países latinoamericanos, precisamos defender a nossa região neste complexo jogo de xadrez das estruturas do capitalismo global e da geopolítica mundial. 

Crescimento econômico com progressiva distribuição de renda, mobilidade social de extratos historicamente subjugados, consolidação da democracia, ampliação do orçamento público para amparar os mais vulneráveis, fortalecimento do Estado e relações externas mais soberanas, protagonizadas por uma coalizão de forças políticas de esquerda lideradas pelos presidentes Lula/Dilma, de fato, mexeram em privilégios seculares e instituídos desde os tempos coloniais. Além disso, a presença do Brasil, como um jogador de peso no tabuleiro internacional, causou enormes desconfortos aos poderes estabelecidos. Precisamos considerar que o rompimento com as cadeias do colonialismo não é algo que acontece com frequência, e quando ocorre é necessário muito poder social e verdadeiras revoluções democráticas.  

Urdiram um golpe nas catacumbas das instituições brasileiras. O jogo combinado da “Lava Jato made in USA” com a mídia comercial, forjaram a legitimidade social para o afastamento da presidenta Dilma. Por sua vez, nos interstícios da sociedade, a teologia da prosperidade preparava os corações e mentes para a “chegada do messias”. 

Vários golpes aconteceram na conjuntura de 2013 a 2018. O vice-presidente traíra, alçado à condição de mandatário, deflagrou a operação desmonte, com a charmosa promessa da “ponte para futuro”. A reforma trabalhista e a PEC da morte foram as recompensas imediatas aos que se diziam “fartos de pagar o pato”, o tal empresariado nacional que financiou os custos do golpe. Deste lamaçal emergiu a figura lúgubre do atual presidente.  

A reforma da Previdência, a atualização das políticas de austeridade fiscal, as promessas de privatizações e a destruição das políticas e instituições de Estado sob a batuta dos chicago boys (Guedes e sua turma), tranquilizaram o pequeno bando que se locupleta com a dívida pública. Ou seja, os endinheirados agiotas da globalização financeira continuaram a dormir seu sono profundo em berço explendido. A própria geração de riqueza, advinda do mundo da produção e da circulação de mercadorias e serviços, é agafanhada pelo capital especulativo, que tem uma robusta ancoragem na dívida pública. Portanto, é tolice pensar que a “ala empresarial brasileira” é vítima do cassino global. São as faces da mesma moeda.

Por outro lado, o capitão farda-suja, paradoxalmente, assegura os dois maiores interesse dos quartéis, a saber,  o alinhamento subordinado aos EUA e o aparelhamento do Estado para garantir interferência na política e dele extrair vantagens pessoais e corporativas.

Enquanto isso, o país mergulha no abismo econômico e em um misticismo arcaico e medievalesco. Os sintomas da nossa ruína são inequívocos. Destruição de empresas estratégicas, entrega de patrimônio, desindustrialização crescente, recessão, inflação em alta. Soma-se a isso uma brutal devastação do trabalho, com perda de rendimentos, informalização em expansão, traballho intermitente, sub-ocupação e desemprego. Todo o peso da crise econômica recai novamente nos ombros dos trabalhadores.

O desmonte de programas estatais, indispensáveis para manter um patamar básico de justiça social, vulnerabiliza expressivos contingentes de trabalhadores, de forma mais drástica, as mulheres, jovens, negros. A desintegração do tecido social, agravada pela pandemia é tão assombrosa que acende a luz vermelha nos castelos dos nossos “liberais cheirosos”, que através de uma extensa manifestação em forma de carta pública exigem mudanças de rumo na gestão da pandemia. 

Essa suave manifestação de descontentamento, se comparada com a virulência como que os donos do poder trataram a presidenta Dilma, só ocorreu depois que a pandemia saiu do controle e o país ocupoou as páginas dos jornais internacionais como lugar perigoso e de ameaça pandêmica. Em três meses acrescentamos mais 100 mil mortos, já ultrapassamos mais de 3 mil mortes/dia e, se continuar nessa progressão, chegaremos rapidamente a meio milhão de mortos, com a rede de atentimento hospitalar colapsada. A tragédia de dezembro de Manaus se espalhou pelo país no primeiros meses de 2021. A vacinação chega a conta-gotas e de forma atabalhoada. A sensação de esculhambação e de medo cresce, inclusive na base bolsonarista, fenômeno identificado pelas pesquisas de popularidade do governo.  

Na verdade, setores da elite se deram conta que navegam em canoa furada. Mas não nos enganemos, esses setores preferem enxugar gelo e esperar que surja uma opção mais palatável em 2022. Ou seja, manterão a canoa equilibrada em águas turvas. Afinal de contas, nenhum presidente foi tão benéfico aos privilegiados deste país quanto Bolsonaro. Criador e criatura se amalgamam de tal forma que não se pode esperar, a curto prazo, uma separação mais definitiva.

Os recentes lances do governo Bolsonaro buscam alojar o centrão e, ao mesmo tempo, reforçar suas relações com setores bolsonaristas nas polícias estaduais e federal. Trata-se de uma ação que abre a guarda com o centrão e fecha a retaguarda com o aparato repressivo.  Esses lances desnudaram também as fissuras nas casernas. As disputas entre alas golpistas de raiz e defensores da Constituição estão contagiando a disciplina nos quartéis. A tentativa é conter a fera (Bolsonaro) e chegar nas eleições de 2022 com a situação sob controle. 

Não podemos esquecer que Bolsonaro encontra prazer no caos. O clima de constante beligerância estimula o presidente e as facções que circundam seu governo. Portanto, a nossa conjuntura será marcada pela instabilidade no âmbito do governo e uma progressiva perda de paciência da sociedade que sente que as condições materiais de sua reprodução estão definitivamente ameaçadas. 

A conjuntura que se abriu com o golpe de 2016 evidenciou o nosso enorme distanciamento da dinâmica real da sociedade. Também demonstrou o grau de defasagem das nossas organizações e repertório de lutas. A nossa tarefa primordial, que não se esgota nos próximos anos e extrapola o período eleitoral de 2022, é de reconstrução da hegemonia social perdida ao longo das últimas duas décadas. No âmbito sindical, precisamos enfrentar com seriedade e método a nossa grande crise de representatividade. Fortalecer a nossa presença nos locais de trabalho com lideranças autênticas e comprometidas com a luta por direitos é algo de extrema urgência. Defender os extratos da classe trabalhadora que possuem contratos de trabalho mais estáveis e formais com organização direta e genuina nos ambientes de trabalho é algo que devemos reconstruir imediatamente. 

A recuperação da representatividade e robustez organizativa, apesar de importante, não é suficiente. As mudanças na esfera produtiva, na circulação de mercadorias e na prestação de serviços estilhaçaram a classe trabalhadora. Além disso, o grau de miserabilidade nos obriga a investir na organização social a partir dos territórios. Nesse sentido, saudamos como algo promissor iniciativas que conectem sindicatos com as comunidades, CUT nos bairros, etc. 

Na verdade, mudanças mais duradouras requerem a constituição de um novo sujeito político que reaprenda na luta concreta por direitos os sentidos da solidariedade e da democracia. Essa é a grande tarefa colocada de médio e longo prazo para ativistas sociais que acalentam o sonho da trasnformação social. As nossas ações coletivas do dia a dia e imediatas devem mirar para esse horizonte mais esperancoso e pelo qual vale a pena lutar e esperançar. 

*Amarildo Cenci é Presidente da CUT-RS e filiado ao Partido dos Trabalhadores

Esse artigo não necessariamente representa a opinião do partido.